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O que o Papai Noel me ensinou (texto)
Em meados do mês de novembro de 1985, época em que o natal começa a permear a fantasia coletiva, a professora de artes pediu a nós, crianças de oito anos que cursavam a segunda série, que desenhássemos o Papai Noel. Seria realizada uma votação, entre os próprios alunos, para decidir qual dos desenhos era o mais bonito.

Nunca fui hábil na técnica de contornar figuras manualmente, por isso não dei muita importância àquela tarefa.

Está certo que, cinco anos antes, em 1980, quando eu contava apenas três aninhos, havia ganho um brinquedo Mini Cine da Estrela, num concurso infantil de fim de ano no qual fora proposto que delineássemos ilustrações natalinas. Nesta ocasião, o meu trabalho ficou longe das melhores classificações, cabendo a mim somente esta prenda destinada a candidatinhos medianos. Entretanto, eu ganhei enquanto aos priminhos meus que se expressavam bem com canetinhas coloridas coube, como brinde, um desenxabido cinto, digo, sinto... sinto muito.

Um quinquênio escoado, esta lembrança nada me motivava. Apesar da pouca idade, tinha eu plena consciência de que só ganhara porque os avaliadores acharam bonitinho um menininho tão pequerrucho colar algodão para perfazer a barba branca do bom velhinho. Sabia que o prêmio não fora nenhum mérito decorrente de algum dom passível de repetir-se em outras circunstâncias da minha vida. Afinal, de modo cruel, descobrimos que, quanto mais crescemos, mais ficamos sem graça aos olhos dos adultos e, o que era gracioso e divertido, torna-se banal.

Peguei o lápis vermelho de modo desengonçado e comecei a rabiscar desleixadamente a folha sulfite. Procurei não pensar que, transcorridos ínfimos minutos, eu seria submetido a exibir, vexatoriamente, o meu rabisco perante a classe. Sem pretensão alguma, deslizava a ponta do objeto de madeira no papel, formando curvas que, eu antevia, não seriam facilmente decifradas, a não ser que fosse empregada muita boa vontade e imaginação por parte dos observadores. E esta hipótese era bem duvidosa, até mesmo porque, até onde era de meu conhecimento, minha mãe não estava lá.

Dando-me conta de que não havia mais espaços razoáveis para esfregar o troço pontiagudo, larguei o pedaço de árvore morta e fixei o meu olhar decepcionado, porém conformado, no plano. Aquela coisa mais estava parecendo um palhaço barbado do que o personagem da mitologia ocidental popular de dezembro. Numa tentativa patética de remendar a caca, escrevi embaixo da caricatura excêntrica: "Palhaço Noel: trazendo alegria para o nosso natal".

Fileira por fileira, os grupos de alunos foram sendo convidados a irem à frente mostrar seus labores artísticos aos coleguinhas. Estes, por seus turnos, levantavam - ou não - as suas mãos para votar todas as vezes que a tia anunciava o nome de um desenhista. O fragmento da extrema esquerda da lousa foi designado pela educadora para grafar o nome dos vencedores de cada fila.

Ao chegar o momento da garotada da minha turma, rastejei-me, cabisbaixo, à dianteira da sala de aula e, com a cara no chão, ergui, timidamente, como uma bandeira a meio mastro, minha arte improvisada, virando o rosto meio de lado para esperar a rajada de risos, como um fracote aguardando uma bordoada.

A pedagoga vociferou: "Quem vota no Marcelo?"

Não ouvindo as conjecturadas gargalhadas, icei, levemente, a pálpebra direita de um de meus olhos fechados, podendo notar sorrisos simpáticos nas faces dos fedelhos. Qual não foi a minha surpresa ao ver a maior quota de mãozinhas auto-hasteando-se. O meu nome foi parar lá no lugarzinho do quadro reservado aos escolhidos de cada agrupamento. Eita! Por essa, eu não esperava...

Será que isto era bom? Eu teria que ir à frente de novo, desta feita, entre o grupo de vitoriosos de cada fileira. Mais uma vez, suspendi o gatafunho e, no meu conceito, sujeitei-me a um segundo episódio de vergonha. E, incompreensivelmente, as palmas com seu quinteto de dedinhos apontaram, novamente, o teto da sala.

Como eu gostava bastante de estórias em quadrinhos, pude visualizar um ponto de interrogação sobre a cabeça da mestra, no instante em que ela redigiu no quadro verde: "Campeão: Marcelo". Por sua fisionomia abobada, deu pra ver que ela também não entendeu bulhufas.

Naquele ano remoto, Papai Noel ensinou-me que, por maior que fosse a minha desvantagem, ainda me restava o meu diferencial.

Marcelo Garbine

Texto publicado pela Antologia de Natal do Castelo Literário, nas páginas 73, 74 e 75 e pela Revista Literária da Lusofonia – Décima Sétima Edição – dezembro de 2015 – Páginas 74 e 75.

A versão em animação digital pode ser assistida na seção Desenhos Animados deste site.

A versão em áudio deste texto – transmitida pela Rádio WRA de Santo André – SP – e pela Rádio Além Fronteiras de Portugal – pode ser ouvida na subseção Crônicas para Rádio da Seção Rádios deste site.

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