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Das coisas que eu aprendi sobre paixão, sexo e diarreia
Lá pelos vinte e sete, dava-me gosto divertir-me individualmente e não depender de ninguém pra ter amenos momentos de prazer. Apreciava um bom papo, de vez em quando, mas sem muitas delongas. Na hora de pegar um cineminha, fugia das companhias. Sozinho, eu podia folhear os segundos cadernos dos jornais e pular de sala em sala dos cines alternativos da maior capital da América Latina. E o melhor de tudo: podia fazer minhas maratonas e assistir a quantos filmes quisesse. Quem aceitaria ver cinco películas seguidas com o compulsivo aqui? Apesar de ser natural ao ser humano compartilhar aquilo que acha legal – o que ficou evidente, nos tempos modernos, com as redes sociais – eu me bastava comigo. Idolatrava tanto esse estilo de vida que, quando estava acompanhado, sentia-me carregando um fardo, por mais que gostasse de quem aturava este chato que vos fala. Via aqueles que estavam de boa, no cantinho da sala, com o balde de pipoca só para eles, e desejava estar em seus lugares. Era um estilo de vida interessante, com uma série de vantagens, mas com data de validade. Um dia, esse modelo esgotar-se-ia.

Tanto descolamento e independência chamava a atenção das pessoas. No ambiente de trabalho, tem criatura pra sentir inveja de tudo. Se você está morrendo de dor de estômago e diarreia, cobiçam a sua saída antes do término do expediente, mesmo sabendo que você passará o restante do dia na fila do hospital ou trancado no banheiro. E até mesmo se as suas intempéries gástricas, dignas de um desafortunado acometido de desarranjo intestinal, culminassem em manifestação de violência impiedosa em forma de gás perverso, haveria quem olhasse de soslaio, apetecendo que o fluido deles tivesse um odor balsâmico como o seu. Dentro desses critérios “maravilhosos”, era óbvio que pais e mães de família, envoltos por rotinas insuportáveis, queriam ter a praxe que eu tinha, sem compromisso, sem ter que dar satisfação pra ninguém, entretanto não olhavam a desvantagem dos momentos de carência e solidão, é claro. Veem as pingas que eu tomo e não veem os tombos que e levo. Mas nem todo mundo bota olho gordo, havia aqueles que sorriam pra mim, que gostavam de mim, que admiravam os meus costumes, sem que suas bolinhas do centro dos braços fumegassem de padecimento.

Foi uma dessas pessoas que começou a interessar-se por mim. Ela era descompromissada e queria continuar sendo. Amava ser livre. Nada mais natural que alguém assim manifestasse um certo affair por quem fosse solto e descompromissado.

Levei-a ao meu apartamento e curti o fim daquela tarde de outubro de 2004. Só que mal os semens foram assassinados pelo estancamento do tubo de látex, ela tirou o celular do bolso para solicitar o serviço de um taxista. Eu fiquei lá, olhando para o teto, sem entender direito o que ocorrera. A beleza da moça era deslumbrante e despertara o poeta adormecido. O néscio de plantão fez uma música em sua homenagem e procedeu a sua gravação num estúdio.

– Desculpe-me, eu me enganei com você. Não sabia que você era tão sensível...

"Cuem, cuem, cuem, cuem..."

Apaixonei-me pela pessoa errada, ela só queria transar. Que patacoada!

E a solitude das maratonas cinéfilas deixaram de ser aprazíveis. O prazer extraordinário custou-me o sossego das alacridades garantidas.

Agora era sentar e chorar e... ai, a diarreia... havia-me esquecido dela.

Bradavam-me, a todo instante, que, um dia, eu ainda riria muito disso. Pensava eu: “então por que não começar a rir agora?”. E quem disse que eu conseguia? Eles estavam certos. O riso é a última fronteira do sofrimento. Quando se consegue rir por ser um desgraçado, está-se liberto. Mas eu só conseguia chorar e... cagar.

Por um lado seria proveitosa essa tal de diarreia. A moça que fez de mim seu objeto sexual era minha colega de trabalho. Um atestadinho médico era de grande valia para deixar de ver a cara da vagabunda por um dia inteiro. Mas eu ficaria fazendo o que na minha casa? Chorando e cagando? Eu não suportava a mim mesmo. Queria trabalhar para ter com o que ocupar a minha “oficina do diabo”.

O tesão dela era transar com colegas de trabalho e ela já estava dando pra outro. E pra pegar bem lá no fundo do meu ego, a bola da vez era um homem com um cargo mais elevado que o meu, fato que contribuía para eu me sentir inferiorizado. Não bastava ter sido um bocó por apaixonar-me por quem só queria sexo? Ainda tinha de ter duplamente o meu orgulho masculino ferido: ser trocado por outro cara e esse outro cara ser mais do que eu. Os meus dotes poéticos, nessa ocasião, não possuíam nenhuma serventia e foram reduzidos a pó. E eu sabia que podia considerar esse agravante como uma extensão do meu aviltamento. Estava com medo de colocar a cabeça para fora da toca. Tornei-me um cagão nos dois sentidos.

Apesar de atrasado para a labuta, decidi que enfrentaria. Mente comanda, corpo obedece. Vamos lá, Mingau. Avante! De qualquer forma, precisaria passar no médico, não para que me abonasse o dia, mas para justificar o atraso.

Cheguei ao hospital ressabiado. Eu devia comunicar o meu problema de forma branda para que não me obrigassem a ficar em casa. Só me interessava uma mera declaração de comparecimento.

– Qual é o seu problema?

– Diarreia.

– Forte?

– Não, fraquinha, fraquinha...

– Líquida?

– Não, sólida, densa, esbelta. Você precisa ver que diarreia camarada! É de dar inveja nos infelizes que são pegos de jeito por esse mal. Dos males, o menor.

– Que nota você dá para a sua diarreia?

– Cinco.

– Você costuma melhorar quando repousa?

– Não, não. Para mim, o repouso é indiferente. Estou em plena condição de trabalhar.

– Eu acho melhor você repousar. Toma o seu atestado de três dias.

“Cuem, cuem, cuem, cuem...”

E lá foi o Mingau pra casa desempenhar os dois citados verbos. Mas, dessa vez, rindo do próprio infortúnio, já que, dez anos mais tarde, estaria mesmo escrevendo sobre isso pra compartilhar a gama de presepadas ridículas e autorizar que rissem às suas custas.

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)

Texto publicado na Revista Literária da Lusofonia – Décima Quinta Edição – agosto de 2015 – Páginas 84 e 85.

A versão em áudio deste texto – transmitida pela Rádio WRA de Santo André – SP – e pela Rádio Além Fronteiras de Portugal – pode ser ouvida na subseção Crônicas para Rádio da Seção Rádios deste site.

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Ilustração de Nanci Penna

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