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Formigas não gritam
– Eu gostei mais das formigas, mamãe.

Sim, a colônia de formigas é uma das atrações do zoológico de São Paulo, que aquela família do interior do estado acabara de visitar.

Na complexa estrutura de três andares, formada por potes e tubos de vidro interligados, foi possível ao pequeno Isaías, inclusive, observar o ninho dos frágeis insetos e ouvir, através dos autofalantes daquela sala, uma explicação de doze minutos sobre a biologia da saúva.

A mãe do menino franziu a testa e expressou estranheza diante da resposta incomum e inocente com a qual as crianças costumam surpreender os adultos.

Que garotinho excêntrico era aquele que achava mais divertido ver pontinhos pretos ambulantes do que macacos, tigres e girafas? Que graça poderia existir em bichinhos inexpressivos que não emitem sons e tão longe se situavam do universo humano? Ainda mais para um toquinho de gente daquele tamanho que mal saíra das fraudas.

Entretanto, pouco tempo teve Sara para mostrar sua estupefação, pois o comportamento singular do marido causava maior espanto do que a fala do filho. Apesar da opção pelo refreamento de qualquer comentário, a mulher não tirava os olhos de Jeremias, que, de modo bizarro, engolia em seco e exibia uma fisionomia pálida.

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As famílias do casal sempre foram próximas. Na infância, moravam em casas vizinhas, em Monte Azul Paulista.

Houve, até mesmo, um affair, mas não entre Jeremias e Sara e, sim, entre Jeremias e Raquel, a irmã mais nova.

Contavam apenas sete anos e já planejavam o casamento. Raquel era uma menina romântica e adorava flores. E, para ela, Jeremias pediu ao pai que plantasse uma rosa no jardim.

Ao raiar de todos os crepúsculos, o galanteador ultraprecoce regava-a com dedicação, enquanto a jovenzinha sonhadora, de pé sobre uma cadeira, olhava-o e sorria do outro lado do muro baixo que separava as duas casas daquela pacata cidade.

O esmero no trato do vegetal era tamanho que o sentimento que o rapazinho cultivava por Raquel começou a competir com a estima pela rosa vermelha.

A motivação de Jeremias já não era a ternura estampada no rosto da namorada, mas, sim, o brilho das pétalas. As águas do regador eram derramadas sobre o caule ao passo que lágrimas de emoção desciam pela face apaixonada do debutante homem.

Transcorridas algumas semanas, o entusiasmado carinhoso preferia cuidar de seu amor preso à terra sob a escuridão do céu noturno, distante da atenção admiradora da amada humana. Evidenciava-se, então, definitivamente, o descolamento do que, outrora, fora o objeto destinado à homenagem de sua finalidade original.

Ao abrigo de um silêncio rompido somente pelo cricrilar dos grilos e pelos coaxos dos sapos, pulava a janela do quarto de dormir para banhar a raiz.

Não obstante este capricho, mantinha o hábito de zelar pela flor também às seis horas da manhã, durante o preparo do café matinal por sua mãe, anteriormente à sua saída para a escola.

E foi numa alvorada de segunda-feira que um choque tomou conta das entranhas de Jeremias. Ao chegar perto de Rúbia – nome dado por ele à rosa vermelha – foi tomado por um voraz ciúme ao avistar uma formiga passeando por sua folha esquerda. Apoderando-se do pequeno ser vivo com os dedos polegar e indicador, espremeu o microanimal com toda a força de sua mãozinha.

Atrás do muro, Raquel apenas sorria, alheia ao ato do menino, feliz com o que ainda pensava ser a rotineira demonstração do bem-querer de seu pequeno herói.

Mirando de soslaio, a visão periférica de Jeremias confrontou-se com o que, para ele, era a testemunha de um homicídio. O menino acreditava que poderia arcar com as consequências pelo assassinato da formiga.

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Após seis noites de insônia, veio o domingo de sol seguinte. Como de praxe, o pai de Raquel levou os dois pombinhos para brincar na plantação de laranjas de seu sítio.

Divertiam-se correndo. O pegador era Jeremias, que disparava tentando alcançar Raquel. A menina ria, sem imaginar que pela cabeça do seu eterno defensor não passavam ideias tão puras.

Quando abeiraram o lago, Jeremias empurrou-a e pôs fim ao que fantasiava ser a potencial delatora de seu crime.

Raquel nunca mais foi vista. Seus gritos não foram ouvidos. A versão de que um velho barbudo levara-a foi aceita pelas famílias.

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Jeremias e Sara vieram à capital para comemorar o quinto ano do casamento. A excursão pelo zoológico foi apenas um dos programas da jornada de festividade.

Agora, Isaías estava encantado com o mesmo ser pelo qual o pai guardara repulsa por toda a vida.

Sara não compreendia o gosto exótico do filho nem o abalo do marido.

Jeremias, refletindo calado, lamentava a falta que fazia sua Rúbia. E, inconscientemente, ainda temia ser encarcerado pelo assassinato da formiga.

Mingau Ácido (Marcelo Garbine)
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